Houve um dia em que cheguei a Tóquio e hoje estou cá. No que toca ao tempo, é a única referência que importa. O título é um mero consolo para as convenções.
Hoje estou cá; daqui a uns meses não estarei. “Meses” é uma abstracção. É importante ter isto presente. O tempo é uma abstracção. A existir, o tempo é uma permanência, de total imutabilidade. O que “passa” somos nós, nós é que somos impermanentes. Não é o “número” de anos que traz o declínio; é o uso. O que há-de vir já cá está, assim como o que foi aqui continua. Quando o Johnny Rotten gritava “No future” estava longe de saber a verdade inquestionável que lhe saía da boca.
Não me lembro de ter feito planos. Escolhas, fiz uma ou outra. Pode-se passar uma vida inteira sem escolher coisa alguma. Há um “sistema”, como dizia o Animal sobre as calculadoras (perdoem-me a críptica reminiscência de infância...), e a vida pode acontecer-nos completamente dissociada da vontade. ALERTA: isto são palavras. Só isso. Se as lerem como conceitos, isso já é culpa vossa. A linguagem é um passatempo; a linguagem não responde a nenhuma necessidade; a linguagem é um prazer; a linguagem não devia ter “valor”; não foi concebida para isso – até que os palhaços dos Sumérios acharam que sim... As palavras não “dizem”; são precisamente uma evolação do indefinível e do indizível; uma palavra tem tanto significado como um pingo de chuva. Significado temos nós, somos nós. Nós é que aceitamos esta alucinação colectiva de que há regras para a linguagem; nós é que voluntariamente carregamos o jugo de aceitar e “entender” regras expressas em linguagem. Este é o “sistema”. Há linguagem como calçada e podemos seguir sempre por ali, sem sobressaltos e sem escolhas – sem escolhas reais, pelo menos; podemos ter a ilusão que optamos.
Quando é que terá sido?... Quando é que a linguagem ganhou este valor absoluto? Podemos não acreditar no que nos dizem, no que lemos – mas não duvidamos da linguagem em si. Se calhar devíamos. Pelo menos de uma linguagem como a nossa, que o uso deixou retalhada em pares de opostos. Antónimos. Parvónimos. Há um caracter japonês cujo significado me foi transmitido da seguinte forma: “estás no meio de uma ponte e podes ir para um lado como podes ir para o outro”. Ou seja, o mesmo símbolo transmite a ideia de “para a frente” e “para trás”, devolvendo-nos a noção básica de que tais noções – para a frente e para trás – implicam apenas sair de um ponto para outro; implicam exactamente a mesma acção: um passo é um passo, seja para a frente ou para trás. A burra mija... imaginemos que uma burrica transitava pela Auto-estrada do Norte, sentido Lisboa-Porto. Perto de Aveiras, a burra quer urinar. A burra encosta à berma e roda sobre si 180 graus, para poder verter águas olhando a igreja de Aveiras e pensando no bom vinho da sua Adega Cooperativa. A burra alivia-se num generoso jacto e esfrega-se nos rails de protecção à laia de papel higiénico. Pergunta: a burra mijou para trás ou para a frente? Percebem o maniqueísmo, a estupidez de tudo isto? Para trás e para a frente de quê?! Antes e depois de quê?! Melhor ou pior que quê?! Aceitamos a linguagem como um edificado lógico quando ela assenta precisamente em nada. NADA!!!
Todavia, aceitamos. Eu também. Não me lembro de ter feito planos. Mas, porque assim está escrito, – não no sentido fatalista do termo mas porque alguém o escreveu – hoje estou cá e daqui a uns meses não estarei. Não estarei porque “é assim”. São as regras... Não; não são as regras. Há uma folha de papel com uns símbolos convencionados (letras) dispostos de uma forma que reconhecemos (os alfabetizados) como querendo dizer que este ano (série de números correspondentes a um ritmo) é altura de deixar Tóquio e ir para outro lado. Alguém escreveu uma frase, num outro dia qualquer, que implica que, num outro dia qualquer, eu saia daqui. Tudo calcetado; “é por ali”. Claro: foi-me dada a ilusão da escolha; “podes optar pelo próximo destino” – porque também isso foi redigido. O que a linguagem me deixou vedado foi a opção “deixem-me estar”...
Ainda que escolhesse a página em branco de mandar a linguagem às urtigas, ela é insidiosa. Está em todo o lado, a cabra. Está, também, aqui, neste facto singelo: diz que há “países”. Diz que eu não sou “daqui”. Diz que para eu pisar esta terra – como outras terras – é preciso ter um estatuto contemplado na linguagem. Porquê? Ui, isso é complicado; mete o Estado, os impostos, a identidade nacional... coisas técnicas, percebe? O que é natural e parece bem é cada um com a cor de cabelo com que nasceu. Ou passas a ser dos nossos ou és dos outros e não cabes cá. Por mais saudável que uma linguagem seja – e a japonesa até o é – nenhuma linguagem é perfeitamente sã: também o japonês tem um caracter para “estrangeiro”, para “gente de fora”, para os que “não são como nós”, para “fronteira”. O que é um estrangeiro? Que sentido é que faz definir pela negativa aquilo que existe, afirmativamente? “Fulano é estrangeiro” – esta frase é uma falácia. Qualquer coisa mais aproximada à verdade limitar-se-ia a “Fulano é.” O verbo ser não precisa de – NÃO PODE SER – complementado. É absoluto. Daí que, o que presumo seja de especial interesse para a Vara, a única resposta plausível para a questão “És paneleiro?” seja “Não; sou.” Quando é que deixámos escapar esta noção absoluta? Nós somos. Porra; é magnífico! Somos. Existimos. Estamos. Não é “preciso” mais nada. Não “somos” mais nada. Podemos adjectivar-nos à vontade; é um prazer imenso fazê-lo – mas confundir isso com “aquilo que alguém é” equivale a confundir o olho do cu com a feira de Beja.
A linguagem não me deixa estar. A linguagem não me exorta a acção – pelo contrário, a linguagem limita grandemente aquilo que eu penso que posso fazer. Porque eu, pelo menos, eu penso com linguagem. É a ferramenta que tenho. Há quem o faça em imagens, ao que me dizem, ou num processo qualquer que evita palavras. Mas eu penso por extenso, numa bela caligrafia cursiva com respeito pelas margens. E NÃO QUERO!!!! Não, não oiço vozes na minha cabeça – só queria deixar de ouvir a minha caligrafia...
Começando a questionar a linguagem, esboroa-se tudo. Sobra o verbo: sou. “Eu” já é espúrio; já é em si um convite à oposição. Sou. E está tudo bem. Tudo se afigura leve, interessante, simples, risível. Um dia destes pediram-me que preenchesse o mapa de férias... O que eu me ri! “Ora portanto... há estas linhas que se cruzam e estes quadrados significam os meus meses e eu ponho aqui uns números que significam dias, é isso?”... Não é divertidíssimo?... Quando nos apercebemos de que tudo isto, como um destes dias me apercebi enquanto escrevia ao Lourenço, está preso por cuspo – literalmente; cuspinho, saliva – quando nos apercebemos que todo este edifício é ilusório, está mesmo tudo bem. E mal. Exactamente ao mesmo tempo. Está tudo. E nada. Está. E não está. Não faz sentido? E o sentido, o que é? Porra, é magnífico! Sim, isto sou eu a adjectivar o que é.
Diz que há uma calçada. Diz que eu não sei. Diz que há aqui uma coisa das muitas que não cabe na linguagem; daquelas que, como a chuva, não precisa de tradução. A ver se me calo e penso ou se finjo que escolho.