É refrescante ler o que Schoppenhauer escreveu sobre o espaço e o tempo – é refrescante ler Schoppenhauer, ponto final. Ainda que eu prefira groselha.
Felizmente, as duas coisas podem concorrer: posso sorver ruidosamente um copo de groselha com muito gelo (aqui não há groselha, donde que afinal não posso...) enquanto esfrego o focinho na ideia de que espaço e tempo são ideias, criações mentais, a nossa forma de “pôr ordem” no que experienciamos. Gavetas. Tupperwares para arrumos mentais.
Ora, se tanto pode ser dito sobre espaço e tempo, conceitos – CONCEITOS – aos quais se pode reconhecer alguma relevância e conveniência, será importante olhar à mesma luz para coisas como o dinheiro, o trabalho e o facto de supostamente estarmos integrados num “modelo” sócio-económico que já ninguém se lembra de ter escolhido e em que as decisões e acontecimentos parecem obedecer a uma causalidade de tudo quanto se toma por adquirido, por “nem é preciso dizer”, por “é mesmo assim”. Não conheço ninguém a quem os dias não “aconteçam”; ninguém que não seja “levado” na corrente do “tem de ser” inquestionado – ninguém em idade activa e com um emprego, pelo menos. De maneiras que ter Schoppenhauer numa mão, Roland Barthes na outra e uma simpática coreana a trazer-me a groselha à boca é o estado ideal para entreter a mioleira por uns minutos, tentando descortinar qual o motivo de andar tanta gente a correr de um lado para o outro e a fazer coisas.
É que isto de fazer coisas faz-me, em turno, impressão. Às vezes é giro mas o mais das vezes deixa de ser, assim que alguém diz “outra vez”. Extrapolando para um dia inteiro a fazer coisas, é uma grande chatice. E não tem um propósito; deixou de haver um propósito. Fazem-se coisas para alimentar o ciclo das coisas – e só não uso esse termo detestável da “coisificação” porque há, ainda, uma réstia miudinha de animalidade, de “vontade”, isto é: ainda há uma quota parte de responsabilidade assinalável de um factor natural nisto tudo, que se pode verter na bela expressão “fazem-se coisas para coisar”.
Pois é. Enquanto me engasgava com a groselha e cusipnhava a branca veste da coreana com pingos grossos de uma falsa menstruação e com um ou outro vestígio viscoso da vida a ser vivida nos meus pulmões, assomou-me uma consciência de que boa parte do “mal” está nos colhões. Podíamos localizá-lo noutros órgãos associados ao desejo mas colhões é palavra que (salvo seja) enche a boca e pode ser expelida com veemência e retumbância, algo que sempre se adequa aos pensamentos alimentados a groselha. O binómio dinheiro-colhões é um dos principais motores do actual estado de coisas. E porquê? Porque há uma ilusão, dentro da Ilusão, partilhada colectivamente e que faz crer que “coisas” potenciam a foda. E não falo do Viagra...
De certa forma, foder deixou de ser um acto físico e tornou-se, sob a formulação “querer foder”, na estrutura teórica do nosso existir. E sublinho TEÓRICA... ainda que o aumento da população mundial comprove a existência do lado prático. Até ao “grande milagre da progénie” trazer alguma ligeiríssima alteração de paradigma, o período que tem início no pós-instrução primária (para os mais lentos) é virtualmente determinado, parece-me, pelo querer foder. Independentemente do género, claro, factor que sempre contou para muito pouco com excepção de evitar alguns enganos embaraçosos no escuro. É o querer foder que dita, em primeiro lugar, a vontade de se “enfeitar”. Não venham com conceitos; venham com histórias mas não me venham com conceitos como “integração social” ou “aceitação social”... A tua filha, leitor, não te pede aquelas calças ou carteira ou pulseira ou o que for “porque as amigas também têm”; a tua filha quer aquele objecto porque não o tendo sente-se com menos hipóteses de que haja quem a queira foder. O teu filho não deixou de usar meia branca com sapatos de vela porque “os amigos faziam pouco”; deixou porque se continuasse a ser pató e pé de gesso tinha menos hipóteses de foder. Ou seja, desde a mais tenra idade, desnaturaliza-se o processo de “selecção natural” do parceiro sexual. As coisas, a aura material que se projecta, são encaradas como factores determinantes para o ensejo de foder. Vive-se num estado de MEDO, e esse medo é traduzível na expressão “se eu não parecer, não fodo”.
Estende-se a tudo; é também por isso que se vai para a Universidade, porque se crê que na Universidade há mais hipóteses de foder que trabalhando como magarefe ou calceteiro ou cerzideira ou bobinadeira – e, para além disso, pode abrir oportunidades para um emprego ou “posição” que, também esse, se comprove mais competitivo neste joguete para niños do “olha que bem que eu estou, bute foder?”. A raíz do problema está em que se juntam “pontos”, pontos esses que, chegada a hora, se mostram afinal não convertíveis em... foda. Mas como bons autómatos que somos, a foda, uma foda, qualquer foda, valida imediatamente toda a estupidez intrínseca ao processo – qualquer foda justifica a ida ao cabeleireiro, os ténis novos, o carro, a casa, o trabalho! A casa, sim; qual é a maior pressão para arranjar um emprego e sair de casa dos pais? A “independência”? Sim, se por isso entendermos ter um sítio para foder à vontade. Porque esse é outro espartilho: é preciso um sítio; é “ofensivo” que, citando o grande Assento, se “faça o amor” pelos cafés, pelas ruas ou no balcão dos congelados do LIDL... e a natureza do sítio é outro factor de competição. Entra-se nisto e é tal a pressão para ganhar pontos, para se parecer qualquer coisa que possa foder, que, de repente, nem "tempo" temos para... isso mesmo.
É que não há outro racional. Ou o sistema é puramente irracional ou, então, é ditado pelos colhões (num sentido universal que se estende a senhoras e senhores e ambíguos). E a alteração de percepção que a progénie possa acarretar pouca diferença faz: soma à continuada demanda por uma posição de alta fodibilidade a preocupação pela posição que os descendentes ocuparão nessa mesma competição. Uma pré-primária gira para que o miúdo não dê beijinhos a piolhosoas; uma carreira educacional que lhe permita ser “alguém”, ou seja: se ele ou ela não foderem, que não seja por incúria dos pais!! E dá-se-lhes quanto se pode e quanto não tivemos (e continuamos a acreditar que teríamos fodido mais se o tivéssemos tido; mais ou, pelo menos, outras pessoas).
Desafio-vos, então: parem um bocadinho, bebam uma groselha e pensem se há realmente necessidade de “fazer coisas” para se fazer sexo. E pensem na raíz última do estúpido conceito de “falhado” – o falhado, nos nossos dias, é o gajo ou a gaja que não fode e PARECE não ter hipóteses de o fazer, da solteirona amargurada ao sem abrigo que cheira a mijo. A ligação mental entre prosperidade e atractabilidade sexual é ainda mais perversa e perniciosa que a ideia de um Banco Central e da “dívida original”.