(não, este não é um texto sobre o Gil do Carmo...)
O ano áureo de 1976 ficou indelevelmente marcado, no que toca à cultura popular portuguesa, por dois fenómenos de inigualável quilate que, não podendo ser interpretados em conjunto, se assumiram como duas forças centrífugas que marcaram a evolução de duas correntes diversas que ainda hoje coexistem no panorama da produção artística nacional: a literatura varetiana e os glutões do Presto.
Falamos, é óbvio, dos primeiros vagidos de Vareta Funda, eterna melodia de esperança que soou nos idos de Março na Clínica de Santa Iria, e falamos também da memorável noite de 22 de Fevereiro, no Estúdio 1 da RTP, em que Carlos do Carmo e Eládio Clímaco trocaram olhinhos meigos, sob o olhar complacente de Ana Zanatti.
Num ano de festival monozigótico, em que todas as oito canções a concurso foram interpretadas pelo mancebo portalegrense da voz maviosa que certa vez chegou a retalhar a vida de um médico (médico esse reconstituído em colcha, que Cila do Carmo conserva na sua caminha de solteira), o POVO, o povo que ainda recentemente recebera a alternativa do toureio político, o povo apoderado da madrinha democracia, o povo que no meio da arena fazia verónicas aos cornudos fantasmas do passado (em pontas), o povo, dizíamos, o povo escolheu e clamou: “Vai o aborto!; para a Holanda, vai o aborto!”
Não que se fosse à Holanda abortar, não. Ir-se-ia à Holanda jogar à Eurovisão, com o Senhor do Carmo em camisola 10, treinado por José Niza e com massagens de Manuel Alegre. Ou mensagens. Ou mamensagens. Ou menmassagens. Gostamos de neologismos como gostávamos então, naquela redentora madrugada. Adiante.
O povo escolheu pela imprensa – sistema elitista, é certo, ligando o voto à literacia e aos tostõezinhos para o jornaleco. E escolheu (mal, devia ter ganho o “No teu poema”) a primeira canção portuguesa que aborda o tema do aborto sob o ponto de vista masculino (ou quase) da poesia (ou quase) de Manuel Alegre (ou nem tanto): “Uma Flor de Verde Pinho”, com o patrocínio do Brise Contínuo.
Que nos dizia, então, Alegre sobre o aborto? Vejamos:
EU PODIA CHAMAR-TE PÁTRIA MINHA
PODIA DAR-TE UM NOME DE RAINHA
MAS NÃO HÁ FORMA NÃO HÁ VERSO NÃO HÁ LEITO
COMO DIZER UM CORAÇÃO FORA DO PEITO? – potente interrogação sobre o carácter forçosamente silente do aborto enquanto prática que não se consegue dizer
MEU AMOR TRANSBORDOU E EU SEM NAVIO. – o presuntivo pai recrimina-se por não ter usado contraceptivo
GOSTAR DE TI É UM POEMA QUE NÃO DIGO – como amar o que “morreu-sem-ser”?; mais um dar de mão a Heidegger no aceitar do dizer poético como morada do ser
QUE NÃO HÁ TAÇA AMOR PARA ESTE VINHO
NÃO HÁ BARCO, NEM TRIGO, NÃO HÁ TREVO – a carestia; não se trata de um aborto burguês, um empecilho evitado, como se conclui no verso seguinte:
NÃO HÁ PALAVRAS PARA DIZER ESTA CANÇÃO. – é adultério, senhores!; adultério dos pobres, sem lugar para cantiguinhas nem excursões a Badajoz
GOSTAR DE TI É UM POEMA QUE NÃO ESCREVO. – a iliteracia do presuntivo pai, numa esquinada elitista de Alegre: o sujeito, o presuntivo pai, não tem acesso ao dizer poético, sendo portanto, e ainda na toada Heideggeriana, um elemento (pouco dotado, intui-se), do “pensamento” científico
QUE HÁ UM RIO SEM LEITO.E EU SEM CORAÇÃO. – o transporte; de súbito, Alegre guina para o misticismo típico de um Ruysbroek, postulando um “transporte trágico” ao invés do transporte do êxtase que o místico holandês descrevia – estaria Alegre a jogar ao ataque, procurando agradar ao júri holandês? Bem se fodeu, de qualquer modo, que a táctica não deu pontos
MAS NÃO HÁ FORMA, NÃO HÁ VERSO, NÃO HÁ LEITO
E por aí fora... Alegre escrevia, Niza compunha, Carmo cantava. Diz que se gravou uma versão em francês, meses mais tarde. Era chique, na altura.
Para além de convidar a uma releitura de Heidegger, “Uma Flor de Verde Pinho” foi um contributo singular para trazer à luz da mediatização a temática proscrita do aborto – falamos de 1976, recorde-se; fosse hoje e Vareta Funda provavelmente não teria nascido, que o que se poupava em Nervovitamine sempre dava para um frigorífico novo... Em resultado disso, diz que hoje é legal (tanto o aborto como o Vareta) que e se pode fazer às claras, felizmente. E já sabem: se transbordarem, usem o navio - ou o cacilheiro do dia seguinte.
Feliz Ano Novo.