(Porque não há uma sem duas)
AO LONGE OS BARCOS DE FLORES
(A Ovídio de Alpoim)
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
— Perdida voz que de entre as mais se exila,
— Festões de som dissimulando a hora.
Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.
E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flébil ... Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?
Só, incessante, um som de flauta chora...
Camilo Pessanha, Clepsydra, Ed. Relógio D’Água, 1995
Neste poema de 1899, escrito num hotel de Cantão, e publicado em 1900, o poeta oferece-nos um belo exercício de evocação visual do som de uma flauta.
Ao ler “Ao longe os barcos de flores”o leitor romântico imaginará que o poeta se encontrava à varanda do hotel (e aqui a indicação da data e local de composição que figura na primeira edição do poema, no jornal Novidades, é preciosa) contemplando a paisagem nocturna dos barcos enfeitados de flores e luzes, sendo então surpreendido pela melodia de uma flauta que emerge da noite, misteriosa, e de tal forma comovente que o leva a pensar numa imagem de mulher para definir tal som. Mas não uma mulher qualquer: uma “síntese” de viuvez, solidão e delicadeza, num choro incessante, um choro de exílio, que se sobrepõe a todo o restante ruído, e enche, tranquilamente, a noite. O poeta fixa-se nessa melodia e acaba por interrogá-la, tentando entendê-la. E ao fazê-lo, ainda que retoricamente, procura perceber a razão de toda essa miríade de sentimentos (tristeza, desamparo, solidão) que o dominam, ao ouvi-la.
Assim, neste poema, ainda que a expressão do “eu” seja aparentemente silenciada, em detrimento de uma perspectiva puramente descritiva, o que ganha relevo, se quisermos “ler” o poeta em palimpsesto, é a forma como este frui a arte musical; que linguagem usa para a descodificar, como a interroga, que associações estabelece entre a linguagem musical e o seu universo emocional e estético, à luz do seu percurso biográfico (que não deixa de ser um elemento relevante para a leitura, já que o poeta faz questão de mencionar o local e data da composição do poema, aquando da 1ª edição).
Neste poema, o desafio que o poeta se coloca é o de imitar o real da forma mais difícil de todas: transmitindo por palavras o som, que por natureza, é indizível. Em contrapartida, ao leitor coloca-se o desafio (ainda maior, porventura) de tentar , através da visão subjectiva do poeta, construir as suas próprias ficções: imaginamos como seria a melodia que fascinou o poeta e imaginamos, em simultâneo, a sua imagem personificada, feminina, frágil, só, reverberando na noite o seu pranto de viuvez.
Dir-se-ia que um dos encantos do poema é essa perspectiva de observador em que o poeta se coloca, dando-nos a nós, leitores, a ver e a ouvir, um cenário féerico e nocturno, marcado ao longe pelo brilho dos clarões, pelo ruído difuso da “orquestra” e dos “beijos”. A noite é Romântica: tranquila, protectora, (a noite de Bocage) , acolhe e ,”cauta”, detém todos esses sons impuros, que apenas servem de contraponto ao som modulado da flauta. Mas o papel do poeta não se confina ao do mero espectador deste espectáculo que se desenrola perante os seus sentidos; cúmplice da noite, e da melodia, dir-se-ia que ele é o único a conseguir descobri-la perdida entre as demais, e a reconhecê-la no seu “exílio” e na sua grandeza de “festão de som”.Na segunda quadra, um certo erotismo na imagem escolhida pelo poeta, e aplicada, curiosamente, não à melodia mas ao objecto que a produz : no meio de uma orgia (de instrumentos musicais?) a flauta branca “cintila” e “desflora” o carmim dos lábios de mulher, que a tocam. Esta imagem, central para a interpretação do poema, legitima a leitura que o poeta faz da melodia, (“só”, “viúva”, “grácil” e portanto, feminina) e abre caminho a interrogações que visam perscrutar a alma de quem assim toca, ainda que o poeta o faça de forma metonímica : “ A flauta flébil … Quem há-de remi-la? /Quem sabe a dor que sem razão deplora?”. Na verdade, e apesar de encerrarem o poema, estas interrogações (retóricas) perdem importância quando confrontadas com o verso final (“Só, incessante, um som de flauta chora...”) pois o desejo de fruição pura e simples do som prevalece, no sujeito poético, sobre qualquer tentativa de o intelectualizar, pensando sobre ele.
De notar que um dos aspectos “encantatórios” do poema prende-se justamente com a repetição do verso “Só, incessante, um som de flauta chora...”, um verso de ritmo tripartido, que se repete, simetricamente no 1º e 13º versos, funcionando o 7º como eixo dessa simetria; a aliteração (Só, incessante, um som”; “trila / a flauta flébil”), a reiteração presente nas interrogações retóricas “E a orquestra? E os beijos?...”; “Quem há-de…?” /Quem sabe…?”, e ainda a redução da rima a duas “sílabas” (ora/ ila) contribuem igualmente para a construção do ritmo encantatório do poema.
Este poema constitui, em suma, uma belíssima manifestação da arte poética de Pessanha, e para usar as palavras de Alfredo Margarido, “um poema dotado de uma força simbólica perfeita” (expressão aplicada pelo autor ao poema “Vida”). A flauta, símbolo concreto, apresenta até uma ambiguidade de significação curiosa: por um lado, “desflora” os lábios de carmim; por outro lado, produz um som flébil, grácil, um choro feminino. Afirma Alfredo Margarido que na poesia de Pessanha “o mundo é caracterizado pela polissemia, e não há situação que o poeta possa resolver impondo-lhe apenas um sentido.”.
Destacaria ainda o simbologia do espaço (o “longe”, o “exílio”), elementos que, no seu contexto, interpõem um certo “distanciamento” entre o sujeito poético e o objecto de enunciação, e que nos recordam (inevitavelmente) que Pessanha foi um “autor do exílio” e um poeta “ao longe”, que (ainda no dizer de Alfredo Margarido) escolheu o Oriente também como forma de interpor uma distância entre si e a sociedade que na época o julgava.
Por fim, gostaria de aqui colocar, em contraponto, o poema de Fernando Pessoa , “Trila na noite uma flauta”, que com este estabelece um discreto diálogo. E digo “em contraponto”, porque neste poema a “flauta”, aparece despida da sua carga simbólica, e o poeta não se deixa submergir pelo som que ela produz, nem se entrega à fruição quase sensorial desse mesmo som. Pelo contrário, o sujeito poético apropria-se da melodia de uma forma intelectualizada, questionando o seu nexo, o seu ser , feito de “nada”.
AO LONGE OS BARCOS DE FLORES
(A Ovídio de Alpoim)
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
— Perdida voz que de entre as mais se exila,
— Festões de som dissimulando a hora.
Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.
E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flébil ... Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?
Só, incessante, um som de flauta chora...
Camilo Pessanha, Clepsydra, Ed. Relógio D’Água, 1995
Neste poema de 1899, escrito num hotel de Cantão, e publicado em 1900, o poeta oferece-nos um belo exercício de evocação visual do som de uma flauta.
Ao ler “Ao longe os barcos de flores”o leitor romântico imaginará que o poeta se encontrava à varanda do hotel (e aqui a indicação da data e local de composição que figura na primeira edição do poema, no jornal Novidades, é preciosa) contemplando a paisagem nocturna dos barcos enfeitados de flores e luzes, sendo então surpreendido pela melodia de uma flauta que emerge da noite, misteriosa, e de tal forma comovente que o leva a pensar numa imagem de mulher para definir tal som. Mas não uma mulher qualquer: uma “síntese” de viuvez, solidão e delicadeza, num choro incessante, um choro de exílio, que se sobrepõe a todo o restante ruído, e enche, tranquilamente, a noite. O poeta fixa-se nessa melodia e acaba por interrogá-la, tentando entendê-la. E ao fazê-lo, ainda que retoricamente, procura perceber a razão de toda essa miríade de sentimentos (tristeza, desamparo, solidão) que o dominam, ao ouvi-la.
Assim, neste poema, ainda que a expressão do “eu” seja aparentemente silenciada, em detrimento de uma perspectiva puramente descritiva, o que ganha relevo, se quisermos “ler” o poeta em palimpsesto, é a forma como este frui a arte musical; que linguagem usa para a descodificar, como a interroga, que associações estabelece entre a linguagem musical e o seu universo emocional e estético, à luz do seu percurso biográfico (que não deixa de ser um elemento relevante para a leitura, já que o poeta faz questão de mencionar o local e data da composição do poema, aquando da 1ª edição).
Neste poema, o desafio que o poeta se coloca é o de imitar o real da forma mais difícil de todas: transmitindo por palavras o som, que por natureza, é indizível. Em contrapartida, ao leitor coloca-se o desafio (ainda maior, porventura) de tentar , através da visão subjectiva do poeta, construir as suas próprias ficções: imaginamos como seria a melodia que fascinou o poeta e imaginamos, em simultâneo, a sua imagem personificada, feminina, frágil, só, reverberando na noite o seu pranto de viuvez.
Dir-se-ia que um dos encantos do poema é essa perspectiva de observador em que o poeta se coloca, dando-nos a nós, leitores, a ver e a ouvir, um cenário féerico e nocturno, marcado ao longe pelo brilho dos clarões, pelo ruído difuso da “orquestra” e dos “beijos”. A noite é Romântica: tranquila, protectora, (a noite de Bocage) , acolhe e ,”cauta”, detém todos esses sons impuros, que apenas servem de contraponto ao som modulado da flauta. Mas o papel do poeta não se confina ao do mero espectador deste espectáculo que se desenrola perante os seus sentidos; cúmplice da noite, e da melodia, dir-se-ia que ele é o único a conseguir descobri-la perdida entre as demais, e a reconhecê-la no seu “exílio” e na sua grandeza de “festão de som”.Na segunda quadra, um certo erotismo na imagem escolhida pelo poeta, e aplicada, curiosamente, não à melodia mas ao objecto que a produz : no meio de uma orgia (de instrumentos musicais?) a flauta branca “cintila” e “desflora” o carmim dos lábios de mulher, que a tocam. Esta imagem, central para a interpretação do poema, legitima a leitura que o poeta faz da melodia, (“só”, “viúva”, “grácil” e portanto, feminina) e abre caminho a interrogações que visam perscrutar a alma de quem assim toca, ainda que o poeta o faça de forma metonímica : “ A flauta flébil … Quem há-de remi-la? /Quem sabe a dor que sem razão deplora?”. Na verdade, e apesar de encerrarem o poema, estas interrogações (retóricas) perdem importância quando confrontadas com o verso final (“Só, incessante, um som de flauta chora...”) pois o desejo de fruição pura e simples do som prevalece, no sujeito poético, sobre qualquer tentativa de o intelectualizar, pensando sobre ele.
De notar que um dos aspectos “encantatórios” do poema prende-se justamente com a repetição do verso “Só, incessante, um som de flauta chora...”, um verso de ritmo tripartido, que se repete, simetricamente no 1º e 13º versos, funcionando o 7º como eixo dessa simetria; a aliteração (Só, incessante, um som”; “trila / a flauta flébil”), a reiteração presente nas interrogações retóricas “E a orquestra? E os beijos?...”; “Quem há-de…?” /Quem sabe…?”, e ainda a redução da rima a duas “sílabas” (ora/ ila) contribuem igualmente para a construção do ritmo encantatório do poema.
Este poema constitui, em suma, uma belíssima manifestação da arte poética de Pessanha, e para usar as palavras de Alfredo Margarido, “um poema dotado de uma força simbólica perfeita” (expressão aplicada pelo autor ao poema “Vida”). A flauta, símbolo concreto, apresenta até uma ambiguidade de significação curiosa: por um lado, “desflora” os lábios de carmim; por outro lado, produz um som flébil, grácil, um choro feminino. Afirma Alfredo Margarido que na poesia de Pessanha “o mundo é caracterizado pela polissemia, e não há situação que o poeta possa resolver impondo-lhe apenas um sentido.”.
Destacaria ainda o simbologia do espaço (o “longe”, o “exílio”), elementos que, no seu contexto, interpõem um certo “distanciamento” entre o sujeito poético e o objecto de enunciação, e que nos recordam (inevitavelmente) que Pessanha foi um “autor do exílio” e um poeta “ao longe”, que (ainda no dizer de Alfredo Margarido) escolheu o Oriente também como forma de interpor uma distância entre si e a sociedade que na época o julgava.
Por fim, gostaria de aqui colocar, em contraponto, o poema de Fernando Pessoa , “Trila na noite uma flauta”, que com este estabelece um discreto diálogo. E digo “em contraponto”, porque neste poema a “flauta”, aparece despida da sua carga simbólica, e o poeta não se deixa submergir pelo som que ela produz, nem se entrega à fruição quase sensorial desse mesmo som. Pelo contrário, o sujeito poético apropria-se da melodia de uma forma intelectualizada, questionando o seu nexo, o seu ser , feito de “nada”.
Trila na noite uma flauta.É de algum
pastor? Que importa? Perdida
série de notas vagas e sem sentido nenhum
como a Vida.
Sem nexo ou princípio ou fim ondeia
a ária alada.
Pobre ária fora de música e de voz, tão cheia
de não ser nada.
Não há nexo ou fio por que se lembre aquela
ária ao parar;
E já ao ouvi-la sofro a saudade dela
e o quanto cessar.
_____________________________________________________________________
Edição utilizada:
Pessanha, Camilo, Clepsydra (ed. crítica de Paulo Franchetti), Relógio D’Água. 1995
Bibliografia
Camilo, João, A Clepsidra de Camilo Pessanha”, Persona, nº10, Porto , Julho de 1984, p.20-33.
Margarido, Alfredo
, “Os sentidos simbólicos da poesia de Camilo Pessanha: visão, ouvido, olfacto”, Nova Renascença, vol IX, Porto, Verão de 1989-Verão de 1990, p. 247-261.
5 comentários:
Eh quarailho!!!!!!!!
Estava-me eu aqui a preparar para vos bombardear com mais uma pér(g)ola da Movida Madrilena, desta feita num video prenhe de imagética que agrada sobremaneira aos frequentadores masculinos mais amaneirados deste blogue , quando dou com este... enfim... exercício da nossa amiga Ginásia.
Deve ser uma espécie de um alô, alô, teste, teste, 1, 2, 3...
Fiquei especialmente sensibilizado para aquela parte do texto que diz assim: "Não há nexo ou fio".
:)
Bem-vinda, VD.
Com postas VD, quem arrota é você.
Boa, comadre VD.
Por aqui ficámos a saber (a confirmar, melhor dizendo) que o Pessoa não era cá da mariquices...
Parabéns, comadre, não deixes de nos trazer aqui a nossa poesia. Eu gosto, mesmo que seja a das flautas, o que me faz lembrar uma anedota de um caixeiro-viajante que foi a Santarém e... bem, não conspurquemos tão belo e romântico post com coisas feias...
Bom dia, cambada.
:)
CONA
Bitoques!
... d'Alumínio!!!!
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