sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Subsídios para a epistemologia e hermenêutica da cultura popular, 2

Carlos do Carmo e o aborto

(não, este não é um texto sobre o Gil do Carmo...)

O ano áureo de 1976 ficou indelevelmente marcado, no que toca à cultura popular portuguesa, por dois fenómenos de inigualável quilate que, não podendo ser interpretados em conjunto, se assumiram como duas forças centrífugas que marcaram a evolução de duas correntes diversas que ainda hoje coexistem no panorama da produção artística nacional: a literatura varetiana e os glutões do Presto.

Falamos, é óbvio, dos primeiros vagidos de Vareta Funda, eterna melodia de esperança que soou nos idos de Março na Clínica de Santa Iria, e falamos também da memorável noite de 22 de Fevereiro, no Estúdio 1 da RTP, em que Carlos do Carmo e Eládio Clímaco trocaram olhinhos meigos, sob o olhar complacente de Ana Zanatti.

Num ano de festival monozigótico, em que todas as oito canções a concurso foram interpretadas pelo mancebo portalegrense da voz maviosa que certa vez chegou a retalhar a vida de um médico (médico esse reconstituído em colcha, que Cila do Carmo conserva na sua caminha de solteira), o POVO, o povo que ainda recentemente recebera a alternativa do toureio político, o povo apoderado da madrinha democracia, o povo que no meio da arena fazia verónicas aos cornudos fantasmas do passado (em pontas), o povo, dizíamos, o povo escolheu e clamou: “Vai o aborto!; para a Holanda, vai o aborto!”

Não que se fosse à Holanda abortar, não. Ir-se-ia à Holanda jogar à Eurovisão, com o Senhor do Carmo em camisola 10, treinado por José Niza e com massagens de Manuel Alegre. Ou mensagens. Ou mamensagens. Ou menmassagens. Gostamos de neologismos como gostávamos então, naquela redentora madrugada. Adiante.

O povo escolheu pela imprensa – sistema elitista, é certo, ligando o voto à literacia e aos tostõezinhos para o jornaleco. E escolheu (mal, devia ter ganho o “No teu poema”) a primeira canção portuguesa que aborda o tema do aborto sob o ponto de vista masculino (ou quase) da poesia (ou quase) de Manuel Alegre (ou nem tanto): “Uma Flor de Verde Pinho”, com o patrocínio do Brise Contínuo.

Que nos dizia, então, Alegre sobre o aborto? Vejamos:

EU PODIA CHAMAR-TE PÁTRIA MINHA

DAR-TE O MAIS LINDO NOME PORTUGUÊS – o nomear como trazer à existência; Alegre em toada Heideggeriana ou as meias-voltas desta coisa da poesia, em que o anti-fascista dá a mão ao proto-nazi

PODIA DAR-TE UM NOME DE RAINHA

QUE ESTE AMOR É DE PEDRO POR INÊS. – diz que era menina; Alegre, pondo seus académicos pés nos sapatões deformados pelos joanetes do pai presuntivo, carpe a melancolia do nome que ficou por dar à menina que ficou por ser; a referência camoniana é um momento maior neste poema: vislumbre da neurose, do progenitor obrigando o mundo a “adorar a morta”


MAS NÃO HÁ FORMA NÃO HÁ VERSO NÃO HÁ LEITO

PARA ESTE FOGO AMOR, PARA ESTE RIO – o somatório das impossibilidades, a não-existente-existência do feto abortado; imagens poderosas: fogo, amor, o carácter sanguíneo do rio, o des-desejo perante o órgão sexual da mulher que aborta


COMO DIZER UM CORAÇÃO FORA DO PEITO? – potente interrogação sobre o carácter forçosamente silente do aborto enquanto prática que não se consegue dizer


MEU AMOR TRANSBORDOU E EU SEM NAVIO. – o presuntivo pai recrimina-se por não ter usado contraceptivo


GOSTAR DE TI É UM POEMA QUE NÃO DIGO – como amar o que “morreu-sem-ser”?; mais um dar de mão a Heidegger no aceitar do dizer poético como morada do ser


QUE NÃO HÁ TAÇA AMOR PARA ESTE VINHO

NÃO HÁ GUITARRAS, NEM CANTAR DE AMIGO

NÃO HÁ FLOR, NÃO HÁ FLOR DE VERDE PINHO. – uma singela tergiversação pela imagética mundana da festa que se não fez, da expectativa gorada. “eu já tinha comprado o Brise Contínuo e tudo”...


NÃO HÁ BARCO, NEM TRIGO, NÃO HÁ TREVO – a carestia; não se trata de um aborto burguês, um empecilho evitado, como se conclui no verso seguinte:


NÃO HÁ PALAVRAS PARA DIZER ESTA CANÇÃO. – é adultério, senhores!; adultério dos pobres, sem lugar para cantiguinhas nem excursões a Badajoz


GOSTAR DE TI É UM POEMA QUE NÃO ESCREVO. – a iliteracia do presuntivo pai, numa esquinada elitista de Alegre: o sujeito, o presuntivo pai, não tem acesso ao dizer poético, sendo portanto, e ainda na toada Heideggeriana, um elemento (pouco dotado, intui-se), do “pensamento” científico


QUE HÁ UM RIO SEM LEITO.E EU SEM CORAÇÃO. – o transporte; de súbito, Alegre guina para o misticismo típico de um Ruysbroek, postulando um “transporte trágico” ao invés do transporte do êxtase que o místico holandês descrevia – estaria Alegre a jogar ao ataque, procurando agradar ao júri holandês? Bem se fodeu, de qualquer modo, que a táctica não deu pontos


MAS NÃO HÁ FORMA, NÃO HÁ VERSO, NÃO HÁ LEITO

PARA ESTE FOGO AMOR, PARA ESTE RIO

COMO DIZER UM CORAÇÃO FORA DO PEITO?

MEU AMOR TRANSBORDOU E EU SEM NAVIO.

GOSTAR DE TI É UM POEMA QUE NÃO DIGO

QUE NÃO HÁ TAÇA AMOR PARA ESTE VINHO

NÃO HÁ GUITARRAS NEM CANTAR DE AMIGO

NÃO HÁ FLOR NÃO HÁ FLOR DE VERDE PINHO.

E por aí fora... Alegre escrevia, Niza compunha, Carmo cantava. Diz que se gravou uma versão em francês, meses mais tarde. Era chique, na altura.

Para além de convidar a uma releitura de Heidegger, “Uma Flor de Verde Pinho” foi um contributo singular para trazer à luz da mediatização a temática proscrita do aborto – falamos de 1976, recorde-se; fosse hoje e Vareta Funda provavelmente não teria nascido, que o que se poupava em Nervovitamine sempre dava para um frigorífico novo... Em resultado disso, diz que hoje é legal (tanto o aborto como o Vareta) que e se pode fazer às claras, felizmente. E já sabem: se transbordarem, usem o navio - ou o cacilheiro do dia seguinte.

Feliz Ano Novo.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Art Class