terça-feira, 5 de agosto de 2008

OS COMPANHEIROS DE BAAL


Pierre Medeiros folheava descontraidamente o jornal desportivo sentado na sanita. O seu organismo era um pouco reticente a um alívio definitivo, apesar dos pequenos iogurtes. Entre duas pastadas decorriam sempre alguns minutos até à saciedade intestinal plena. Pierre assobiou uma musiquinha de tourada. Nisto, sentiu um puxão vindo do interior da sentina. A sua hemorróida foi puxada com violência, atravessando o sifão e atada com um nó cego algures na canalização logo abaixo do chão dos lavabos. O agente que perpetrara o infame acto rastejou com celeridade pelo interior da canalização, até à fossa séptica do prédio e desapareceu no labirinto dos esgotos de Paris.

No dia seguinte, num conhecido jornal diário, surgiram notícias acerca de uma misteriosa sociedade secreta que actuava sub-repticiamente nos esgotos de Paris e atava as hemorróidas de inocentes cidadãos à canalização. Que misteriosos intuitos iniciáticos perseguia esta organização criminosa? Fontes anónimas designavam-na por C .: B .: e associavam-na a obscuros intuitos subversivos e anti-religiosos, que se dizia, minavam já o próprio governo. Numerosos padres debateram-se presos ás retretes das sacristias durante dias a fio. Filas imensas de cidadãos aflitos formaram-se à porta de sanitários públicos. Embaraçados cidadãos que não tiveram outro remédio senão aliviar-se pelas pernas abaixo em plena rua, com as torcidas saindo pelas pernas das calças em paragens de autocarro ou defecando nos parques e jardins da cidade. O medo instalou-se e era vulgar ver pessoas de calças em baixo obrando sem pudor nos relvados do Jardin des Tulleries e mesmo no Grand Trianon de Versailles, entre as cnifófias e os filodendros. As torcidas e poças de urina tornaram-se ubíquas nos passeios, por entre as dos cães, às portas de lojas e edifícios públicos. Era vulgar ver faces vermelhas sustendo o cagalhão enquanto se era atendido numa qualquer loja. Ou então, ouvir rebentar esguichos diarreicos na lingerie de bem postas senhoras em lugares públicos. O governo instaurou o estado de emergência e recolher obrigatório a partir das sete da tarde. Patrulhas da Legião Estrangeira passaram os esgotos a pente-fino, sem sucesso. Dos elusivos C.: B.: nem sinal. Nos bairros sociais não se notou qualquer diferença pois as pessoas já defecavam habitualmente na rua. No auge do desespero, os cidadãos de Paris viram surgir uma luz rósea e diáfana sob os céus da cidade que irradiava de uma coluna de nuvem. Era Deus Nosso Senhor.

- ‘Estultos, idólatras, que venerais bezerros de oiro e o Dinheiro! Temei, sandeus, que dos esgotos ora surge o meu instrumento de vingança; Humanidade ingrata. Destruir-vos-ei estirpe infiel! Nunca mais vos aliviareis, expulsos que sereis do Éden, por irado querubim de espada esguichando fezes! Vossas entranhas prenhes de imundícias rebentarão fedentes e haverá muita pestilência e ranger de dentes’.

Os cidadãos, especialmente os da esquerda liberal, daqueles que andam sempre com jornais e livros fininhos debaixo do braço e usam blazers de veludo cotelê castanho claro e golas altas, temeram, arrancaram os botões de suas vestes, cobriram a cabeça de cinza e enfiaram-se nas igrejas rezando com piedade.

Jeová apiedou-se deles e voltou atrás no intento de exterminar a Humanidade. Mas comutou o castigo, convertendo por artes cabalísticas, todas as sanitas de Paris nas versões turcas do sanitário. As pessoas caíam, desequilibrando-se, com as nádegas nas laradas que já tinham expelido; sujavam a parte de trás dos sapatos; escorregavam nas estrias da sanita e caíam desprotegidas sobre as imundícias. A qualidade de vida diminuiu muito e a mais negra barbárie abateu-se sobre a cidade e durou mil anos.

17 comentários:

Anónimo disse...

Primeiras?

Eina pá, AdaS! Parecia o Ensaio sobre a Cegueira, pá.

E o que aconteceu aos cidadãos de esquerda liberal que usam pêra, barba e fumam cachimbo? E os que passam a vida na Cinemateca, no Nimas e King? :D

Muito bom.

booberella

Assento da Sanita disse...

Isso ainda existe? Eu pensei que agora usavam óculos de massa rectangulares e tinham raapo o cabelo.

Anónimo disse...

Claro que existem. Parecem aquelas pessoas que cristalizaram nos anos 70, 80 e continuam a usar a roupa que se usava nessa altura. Tipo golas altas de lycra e blazers de tweed com cotoveleiras de cabedal (estes até são giros, diga-se de passagem).

Mas tens razão, há os que usam óculos sem graduação para impressionar as miúdas. E há também os que usam uns lenços enrolhados ao pescoço, de preferência iguais ao do Arafat (queagoranãomálembraonome do raio dos lenços), fumam galoises ou gitanes só para armar e acham que o supra sumo da cozinha é cozinhar pratos de nouvelle cuisine (tipo aqueles pratos que se comem nos restaurâns da moda e depois vai-se a correr à roulotte beber uma mine e uma pita, tal é a fome).

:D

booberella

Assento da Sanita disse...

Eu ia assim à Cinemateca! Mas, note-se nos meados de 80. Era de facto um sucesso. Excessivo mesmo. Mas não quer dizer que agora não seja uma consciente atitude 'retro'. O que ainda é mais intelectual. Olarilas.

O que um gajo faz para agasalhá-la...

Ai cona, cona, que não dás de comer à dona...

Assento da Sanita disse...

A ao Quarteto antes daquilo estar cheio de pulgas. Filmes intelectuais do R. W. Fassbinder em que ele falava ao telefone durante meia hora, enquanto fumava nú sentado na cama a coçar os testículos e o namorado a ressonar por trás. Existencialistíssimo.

Anónimo disse...

(gandas gralhas no meu último comento)

As cadeiras do Quarteto do canto eram terríveis: via-se o filme de lado. E as salas cheiravam a mofo e a alcatifa. (ainda assim, o Quarteto faz falta).

Fish, fish eram o Império, o Condes, o Eden, pá. Ia-se para o segundo balcão, havia sempre um velhote para picar o bilhete e levava-nos ao lugar (olhábicicléta!).

Ehemm! Mas isso só sei de ouvir falar, quieu ainda não tenho idade para votar. :D


E hop lá!

booberella

Anónimo disse...

PS - Ina pá, do que fui lembrar-me!: E os telões a anunciar os filmes? Enormes e pintados à mão?

Agora é que é: fui.


booberella

Anónimo disse...

O mundo é uma escadaria, sobem uns descem outros.




no balcão do Capitólio, em pé encostados ao corrimão que dava para a plateia, havia muitos intelectuais a dar ao nabo a ver quem mandava a esguichadela mais longe e acertava na cabeça dos das primeiras filas... depois seguiam para as sessões da meia-noite do Quarteto...

Anónimo disse...

PS - Ina pá, do que fui lembrar-me!: E os pilões a anunciar os filmes porno? Enormes e sarapintados à mão?

Agora é que é: fodi.


bobó

Dum Dum disse...

Eu entediei-me em N pretensiosas sessões da cinemateca nos meados da década de 80 e pelos 90 adentro.
Dentro do infecto pó do Quarteto, ao chupar intermináveis estuchas, tive apenas como recompensa a imunidade para o resto da vida a várias alergias cinebacterianas.
Gostava de ter comido pipocas no Capitólio assistindo a "o Diabo em Miss Jones" ou "O Êxtase sexual de Macumba", mas as más companhias na minha estouvada jeunesse empurraram-me para o abismo da...

...???...

Mas isto vem a propósito de quê?
...
A posta "os companheiros de Baal", sim senhores, tá fabulosa! Um condensado mix literário de "O Perfume" de P. Süskind, do bíblico livro "Êxodo" e de "A Queda" do Camus.
Creio, no entanto, que a foto ilustrativa é armada ao pingarelho. Quantos conhecerão o obscuro filme "Les compagnons de Baal"?

Eu colocaria a ilustrar o texto a imagem de uma arrastadeira em talha dourada.

Anónimo disse...

Do Capitólio só conheço a arquitectura do Cassiano.

Não vi o filme, nem fui grande frequentadora da Cinemateca. Sou uma incultica.


(Ena, ena, dum dum, encontrei alguém que sabe pôr um trema em vogais: äëïöü). :)

booberella

(vá, clonito,aka, bobó, faz o teu papel) :D

Dum Dum disse...

Boooberella,
Colocar trëmas é fácil.
Difícil é pôr os "?" e os "!" a fazer o pino, como faz o bock.

Para o conseguir é preciso passar longas horas a ler muitas revistas ¡HOLA!

Assento da Sanita disse...

Os companheiros de Baal não sei se deu um filme, mas era uma série que dava nos anos 60 na TV portuguesa. Tenho uma ideia muito vaga. Só se lembrarão dela razoavelmente pessoas com 45 anos ou mais. De facto a única imagem que retive foi que nessa série vi pela primeira vez aquelas celas com paredes ou tectos com bicos metálicos que vão baixando. Não me lembro de mais nada. Os meus pais falam nela.

Assento da Sanita disse...

P.S. daí a imagem, que é a única que retive, ó dum.

Anónimo disse...

dum dum,

Isso já não sei fazer. É muito moderno. (leia-se, não encontro a tecla). :D

Ah, e escrevestes mal. É revista Ihola. :D ;)


AdaS,

Mas nada impede que esse filme seja distribuído numa qualquer Visão, DN, Espesso, Sol, 24 horas, Correio da Manhã, Gazeta de Figueira de Castelo Rodrigo, Clarim de Moimenta da Beira ou Notícias de Miranda do Douro. :D

(deve ser pesadíssimo, não?)

booberella

PS - Há posta nova.

Dum Dum disse...

Além de nunca ter entrado no Capitólio também nunca vi tal telefilme.
E também nunca vi arrastadeiras em talha dourada.
Pior: a minha ignorância é tamanha que nem faço ideia se as igrejas têm casas-de-banho e se, em caso afirmativo, têm uma acústica adequada à casa do Senhor...

Enfim... só depois de ler o post, movido pela curiosidade, é que constatei a minha ignorância em relação à minha própria casa:
sou detentor de dois garbosos filodendros.

Mas, pelo menos, uma coisa eu sei: não gosto de cnifófias!

Assento da Sanita disse...

garbosos...filodendros...