quinta-feira, 28 de abril de 2011

A ROSA



Muita coisa a fazia rir, especialmente quando ela própria atropelava algumas palavras com o mesmo riso e se assemelhavam a algo inocentemente malicioso. Foi na segunda década do século passado que se casou, numa aldeia, por entre lanternas mágicas ambulantes com imagens da I Grande Guerra, lobos, pilhas de carvão de azinho fumegantes, uma mãe que comia tachadas de alhos fritos como jantar e bailes, muitos bailes, ao mero som de uma harmónica tocada até sangrarem os lábios do tocador. Muitas vezes, ora apenas nos versos ou timidamente trauteadas, essas músicas, chegaram aos meus ouvidos, sessenta ou setenta anos depois. Eram músicas cantadas pelos ranchos que iam mondar, apanhar azeitona ou ceifar campos a muitas léguas e muitas horas de caminho da aldeia. Três ou quatro da manhã para chegar ao alvor.

Uma rival de amores, mais atrevida ou em desespero de causa, foi deitar-se na cama de um ébrio noivo na noite despedida de solteiro e isso soube depois toda a aldeia. Raiva, despeito e uma aversão a corpos estranhos ao seu sangue não terão facilitado a intimidade desse matrimónio. E a liberdade possível de cantar e bailar também ficou para trás com o casamento. Só, nos montes, enquanto o marido guardava varas e rebanhos, capava porcos e com eles percorria montados, dormia em valetas e à chuva; temeu que malteses se fizessem ao roubo e sabe-se lá que mais; mas isso nunca aconteceu e os filhos foram nascendo e criando-se. Depois, a cegueira de três anos, vinda da alma, pois o médico que a tratava por ‘tu’ ou virtuoso que tinha um crucifixo dentro de uma garrafa, nada lhe encontraram. E as sezões, que eram malária apanhada nos arrozais apesar de ninguém lhe chamar esse nome, deixou-a mais anos seguidos de cama. Era nos delírios da febre e nos pesadelos, que chegou a filha mais nova a ouvir muitas vezes arrepiada, que cantava. Depois, o filho mais velho, de que retenho na memória apenas um auto-retrato a lápis, morreu num sanatório e passou ela a vestir-se de preto. Uma prima, que esteve temporariamente lá em casa, também se deitou com o marido. A chave de uma misteriosa arcazinha, foi encontrá-la no meio de uma seara e assim teve as provas da intimidade deles (uns preservativos, presumo eu). Décadas depois, ‘a tua prima’ era uma interjeição que usava quando se dirigia ao marido, que só compreendi depois de me contarem esse evento. Das partes em que, depois de velha, sofreu com doenças só referirei que teimosamente se levantou, vez após vez e sempre todos vaticinaram o seu entrevamento definitivo. Voltava a cantar e a dizer versos. Quando morreu e só lá estava eu, absolveu-me de lhe ter dado com uma sachola na cabeça quando eu tinha quatro anos, pois de mais nada enquanto viveu comigo me acusou ou julgou; antes contava-me histórias que ia inventando no momento. Apesar de a ter visto sempre de preto, o vestido que guardou para que lhe vestissem depois de morta era colorido e ás flores. Eram rosas grandes em fundo castanho e creio que esteve guardado desde os tempos de solteira.

16 comentários:

Bock disse...

Atirem-me água benta!

g2 disse...

Lindo...

Tens mais?

Assento da Sanita disse...

Tenho, mas não posso abusar porque a história é verdadeira.

g2 disse...

Não faz mal, ninguém sabe disso, calha bem.

g2 disse...

Boquito, vamos à bola?

Traz aí o cachecol e bora lá...

Assento da Sanita disse...

Moderem lá os engates em código, ok?

g2 disse...

Tiveste graça...

Bock disse...

Vou à bola é mas é o caralho, que o que tu queres sei eu, é que te pague o bilhete e as jolas e as bifanas...


Cabrões dos putos com a tanga que tão à rasca, esmifram a malta até ao tutano.

Mete a bola no cu, pá!

Bock disse...

Parece uma história sul-americana, sobretudo o detalhe final.
Andaste a ler muito Gabriel Garcia Marques, ou assim, Assento?

Assento da Sanita disse...

Ultimamente não. Mas tens alguma razão. O que acontece é que simplesmente é que o tema se presta a isso.

Assento da Sanita disse...

E a estória é absolutamente factual, tal como disse ao Gê-coiso.

Bock disse...

Mas enfim, estou a ver onde foi que foste buscar a tua verve, imaginação e propensão para os estados alterados de consciência sem ingestão de substâncias alteradoras do estado de consciência.

Assento da Sanita disse...

É uma glândula.

Bock disse...

A glândula janaduitária?

Assento da Sanita disse...

Ora batatas.

Anónimo disse...

Ena!

Também quero mais e podem ser falsas.