quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O lado longínquo do Mundo


Sou especialista em bestas, mais concretamente em atrair bestas, das quais depois tenho dificuldade em desenvencilhar-me. Viscosas, moentes, histriónicas, insidiosas e cruéis todas. Fazia-me lembrar uma prima que tenho, trigueira, de nariz grande e que eu não vejo há muito tempo: o cabelo negro, ligeiramente crespo, para o baixo, olhos castanhos grandes e sobrancelhas fartas. Vista de perto, a pele da face apresenta os poros dilatados, um problema de compleição dir-se-ia. Fez questão que fosse lá a casa. Primeiro mostrou-me a biblioteca. Dois tomos de Civitas Dei cheios de ‘post it’s amarelos e rosa. Depois, os vinte quatro volumes das 'Causas da Decadência da Igreja' de Georg Sand , uma biografia de Hoerbach, um portulano e um missal jesuíta de Anastacius Kirscher compunham a sua colecção de livros, que me mostrou. ‘Afinal, onde devo procurar o gato e como o devo reconhecer’ – atalhei. ‘Não sei bem. Foi visto a fugir por uma tampa de esgoto abaixo em Campo de Ourique, mas não tenho a certeza se me disseram a verdade’. Peguei na mochila, virei-lhe as costas e preparei-me para descer a velha escada de madeira e já galgara três lances dois a dois, ao que ela disse -‘Vem cá. Vamos foder! Lavei os lençóis por tua causa’. Desacelerei o passo mas não voltei atrás. ‘Não costumo, com as minhas clientes; é má deontologia. Desculpa’- Voltei a acelerar o passo. Apanhei o americano puxado por dois emigrantes sudaneses e com uns trocos que ainda tinha no bolso paguei ao revisor, que me passou um bilhete da máquina dispensadora que trazia a tiracolo. No americano, uma pequena televisão a preto-e-branco mostrava uma cinquentona ruiva a demonstrar reiki aplicado aos gatos. Uns eflúvios luminosos, que disse serem cor-de-rosa saíam-lhe das mãos para a cabeça do gato, mas aquilo pareceu-me pós-produção. Saí na Silva Carvalho, por baixo de um lodão. De mãos nos bolsos, comecei a procurar o gato, sem resultados. Passados vinte minutos, desisti e fui comer. Num banco, ao balcão estava ela a comer massa. ‘Já o encontrou?’. ‘Não. Mas ainda agora comecei.’ Pedi uma terrina de bacalhau em calda e comecei a comer em silêncio e de mochila ás costas. ‘Amanhã, tenho de apanhar o comboio. Antes disso, vou-te deixar uns apontamentos sobre marcas particulares do gato, manhas, hábitos e outras coisas que vais achar úteis, se o queres encontrar’. ‘Não quero. É pelo dinheiro. Não te serve outro gato? Vi vários por aí…’. -Disse de boca cheia. ‘Irmãozinho, não me serve um qualquer’. Tirou os fones, meteu-os nos ouvidos e foi cantarolando enquanto raspava uma nódoa da mini-saia. O empregado, com um lenço vermelho atado na cabeça aproximou-se de mim e disse: ‘ vi esse gato na biblioteca’.’Hum…qual biblioteca?’. ‘Entre os volumes quinze e dezassete das 'Causas da Decadência da Igreja' de George Sand. Falta-lhe o dezasseis’. Engoli o nabo cozido que acompanhava a terrina de bacalhau e saí a correr para casa dela. Subi as escadas e com um cartão da Carris, abri o trinco. ‘Esta gente, que deixa a porta só no trinco…’-pensei. Da estante tirei o décimo quinto volume das ‘Causas’ Lá estava um gato seco, só já pele e ossos, esborrachado como se tivesse sido passado a ferro e com ovos de traça. Ela tinha vindo atrás de mim. ‘Já me tinha esquecido que o tinha deixado aí. Fui atropelada por um triciclo motorizado com batatas há dois anos. Tive um traumatismo e estive em coma. Esqueci-me de muita coisa. Até do gato.’ Começou a chorar. ‘Como é que o empregado do bar sabia?’ – disse. ‘Acho que escrevi na ementa. Tirei o papel para fora e escrevi. Tenho episódios de escrita automática desde o acidente. Ou talvez cá tenha estado alguma vez. Ele trata-me como se me conhecesse e eu não me lembro nada dele.' ‘Deves-me trezentos euros’. – Disse-lhe eu estendendo-lhe o gato seco e passado a ferro. Ela afagou o gato. Pegou-me na mão e puxou-me para o quarto. Fodi-lhe o rabo a seco, porque ela assim me pediu. Suou, vermelha como um pimento e doía-lhe de certeza, mas não proferiu um ‘ai’. ‘Só me deves duzentos e noventa e cinco’. Peguei na mochila e fui-me embora a pensar se a quereria ver outra vez, caso em que lhe devolveria o dinheiro. 'Logo penso nisso'.

20 comentários:

g2 disse...

:)

No comments!

Assento da Sanita disse...

Lês depressa...

Anónimo disse...

Genial AdAs. You should take it professionally....

g2 disse...

E li...

VD disse...

Que bostada...Estás a perder qualidades:(

Vareta disse...

O film noir à AdaS! James Ellroy meets Chefe Silva numa Campo de Ourique bressoniana! "A conduta de esgoto para o inferno", com o Miles Davis substituído pelo Joel Xavier com um gato a ferrar-lhe as garras nos tintins. Obrigado, AdaS!

VD disse...

Não consigo gostar disto. Deve ser por estar a ler George Elliot e ver todas as semanas Dowton Abbey :s

(Acho que este texto denuncia uma perigosa inflexão para a estética da empada de galinha e do galão aplicados à crónica literária. E fico chateada, é claro :)

Assento da Sanita disse...

O Chefe Silva, ah ah ah esse mixordeiro, Vareta, abraços, pá!

Bock disse...

Ena, c'um cacete.
Com esta o porco ficou à tripa forra.

Assento da Sanita disse...

Ficou, mas foi esgaramentar a laustríbia para os lavabos da Refer e veio de lá um preto que lhe fodeu a carteira depois de o empalar à bruta.

luí disse...

me encanta !

Vareta disse...

"Veio de lá um preto" - o preto estava escondido por de dentro da sanita?... É uma gente muito manhosa...

VD disse...

Também podia estar disfarçado de piaçaba, pendurado de cabeça pra baixo:D

Vareta disse...

Ou de papel higiénico da Renova... :)

fininhO disse...

o adas leva na bufa que nem uma besta

Assento da Sanita disse...

Não leva nada.

Bock disse...

Pois não.
Mas lá que leva na bufa que nem uma ovelha, lá isso leva!

Vareta disse...

Donde se supõe um certo conhecimento íntimo de que o Bock dispõe sobre o que será a natureza 'lãzuda' do AdaS...

Bock disse...

É certo e sabido que o AdaS, quando tem as pança cheia de vinho - qual odre de pele de cabra montês - tende a entrar no domínio do pessoal e intransmissível.
Não tenho a culpa. Os ouvidos são como a líbido: não se desligam só porque a gente quer.

Anónimo disse...

Gentinha rabeta!