sexta-feira, 1 de junho de 2012

Subsídios para a epistemologia e hermenêutica da cultura popular, 3

Dora e o SM

Ora mil nove e oitenta e oito... Onde estava eu? Andava por aí, com 12 anos, já moço feito, púbere e bem ensocado.

Antes de arder o Chiado, havia um programa na RTP chamado Deixem Passar a Música, onde António Sequeira, Valentina Torres e Ana Paula Reis se entretinham a, entre outras coisas, apresentar as cinco canções que a RTP encomendara a "compositores de renome" (e o que seriam senão 'de renome' indivíduos como Luís Filipe ou Luís Duarte?) para competirem com a cantiga vencedora do Prémio Nacional de Música de forma a que, de entre as 6, dealbasse a imaculada pomba que voaria até Dublin para nos representar na Eurovisão. Foi um ano de sincera revolta, para mim. Devo confessá-lo: o Prémio Nacional de Música TINHA que ter sido ganho por Ana e Suas Irmãs, belíssimo projecto com uma agradável cantiga de Nuno Rodrigues. Não foi, no entanto, e eu apanhei uma camada de nervos. Adiante...

Do Prémio Nacional de Música saiu vencedora Dora, com "Déjà-vu", sentimento partilhado por muitos portugueses quando a viram: "esta não é a serigaita que cantava o 'arreia as calças gabiru' ou 'não sejas ruim par'mim' ou qualquer coisa assim?". Pior ficariam quando coube igualmente a Dora interpretar a canção que José Calvário e José Niza, consta que num armazém ali a Braço de Prata, conceberam como hino às práticas sado-masoquistas: "Voltarei", a canção que, finalmente, nos foi representar a Dublin.

Se musicalmente "Voltarei" é um pastiche de power ballad à Meatloaf cantada pela Bonnie Tyler dos pobrezinhos, já liricamente a coisa é de outra água. José Niza confere uma toada noir, toda ela coiros curtidos, correntes, pulseiras de estrangulamento, ao que parece ser só uma cançoneta de ai jesus que lá vou eu. Atentemos nalgumas das subtilezas:

VOLTAREI P'RA TI
ESPERAREI POR TI
POR TE AMAR ASSIM - primeiro indício, com aquele indiscreto "assim", que isto não é só um amorzito banal
VOLTARÁS P'RA MIM

ESPERAREI POR TI
SOFREREI POR TI - e isto dito assim como quem nem repara...
VOLTAREI POR TI
VAMOS JOGAR ATÉ AO FIM - ora cá está; a componente lúdica, "isto somos só a gente a brincar, amor"

1, 2, 3 VOU COMEÇAR - belíssimo verso, prenhe de simbolismo, vertendo toda a ritualização do 'contrato prévio' sado-masoquista
É AGORA A MINHA VEZ - saudável visão de alternância
ESTOU AQUI E NÃO ME VÊS
PORQUE ANDAS CEGO - presume-se que o parceiro foi vendado, prática habitual no milieu

FINGI QUE TENHO OUTRO AMOR
PARA PÔR NO TEU LUGAR - isto sim, isto é poesia com responsabilidade social!, ao que cremos, é o primeiro verso português a popularizar o uso do vibrador
AGORA FICO A GANHAR
POR DOIS A UM SEM TI - (presume-se que fosse um daqueles que dá a volta)

MAS FIQUEI SEM TI
POR TE AMAR ASSIM
QUEM RI MELHOR CHORA NO FIM - o verdadeiro slogan do S&M português... 

O JOGO JÁ TERMINOU
A NOITE TAMBÉM PASSOU
QUEM PERDEU OU QUEM GANHOU
EU JÁ ESQUECI - o compromisso de reserva e discrição: fina a noite, ninguém precisa de saber quem foi açoitado por quem

AI, JOGO DE SORTE E AZAR
O AMOR É COMO O MAR
TEM MARÉS DE IR E VOLTAR
E EU VOLTAREI P'RA TI - Dora pungentemente retrata a submissa, a que volta para novas brincadeiras com velas e cordames de navio e plainas... não?... plainas não?

VOLTAREI P'RA TI
ESPERAREI POR TI
VOLTARÁS P'RA MIM

ESPERAREI POR TI
SOFREREI POR TI
VOLTAREI P'RA TI
TU VOLTARÁS P'RA MIM

VOLTAREI P'RA TI
VOLTAREI P'RA TI
ESPERAREI POR TI
VOLTARÁS P'RA MIM

O vídeo era uma coisa insossa; muito mais gratificante é esta versão em que se pode ver a Valentina e o Sequeira:




E foi assim, 1988. Depois disto, como não havia o Chiado de arder?

4 comentários:

VD disse...

E isto era só um prenúncio do que estava para vir: a dominatrix Dulce Pontes, rainha do S&M, com aqueles guinchos lancinantes de quem está a levar com o chicote...

g2 disse...

E hoje é sexta-feira :)

Olá, Senhor da Vareta Funda

ostia disse...

nesa altura eras um puto, esperabas entender esas coisas?

Vareta disse...

É na mais tenra infância que se desenvolvem certas compulsões... Dizem. Eu cá não sei nada disso.